Alguns trechos de Perché mi piace
Com “Porque Paula era Paula e eu era eu”, Ana Galletti M. de Oliveira nos traz uma carta para sua amiga de infância, com quem descobriu o que ela chama de “marca da incompletude”, o alívio de se saber imperfeita junta às imperfeições da outra, que serve tanto como espelho quanto como verdadeira alteridade, ao lhe devolver suas próprias questões de um modo leve e cômico, lembrando a ideia de uma “função fraterna”, recuperada junto ao psicanalista Joel Birman, de “servir de testemunho da existência de alguém”.
No ensaio “Filha de uma puta conversa”, Priscila Venosa joga com a tensão entre as imagens da mãe santa e da mãe puta, para enxugar seu percurso na maternidade, em passagem brilhante, até a posição de mãe, sem mais: “que sua mãe era uma mulher louca, que sua mãe era uma mulher fraca, que sua mãe era uma mulher, que sua mãe era uma, que sua mãe era. De ponto em ponto a menina foi subtraída, mas quase nem notou, pois onde pesava o adjetivo, pesou o substantivo e sorrateiramente chegou-se ao verbo, cujo sujeito era a mãe”.
Em "Hoje”, Ana Laura Prates faz um caminho extremamente vigoroso de toda frieza científica e assepticidade opressoras da passagem por um hospital da elite paulistana à notícia do assassinato de Marielle Franco: “mataram Marielle de amor, bem junto ao passo do passista da escola de samba no largo do Estácio? A face do amor ao próximo tão próximo e tão outro que vira ódio, não é, Freud? Mataram-na porque ela ousou perguntar por que a guerra, não foi, Einstein? As balas cavaram buracos em seu corpo negro, fazendo vazar o sangue vermelho e quente, igual ao da professora, igual ao que acabara de ver saindo do corpo do meu filho, para o progresso da ciência”.
“Lembranças improváveis de um narrador plausível” traz a posição um tanto quanto corajosa e aberta de Paula Pires, ao se perguntar sobre a memória do psicanalista, expondo suas questões como profissional, seus próprios lapsos e dificuldades, sem a necessidade de uma palavra final para sua própria indagação: “atores dizem se beneficiar por viverem muitas vidas ao representá-las. E o psicanalista? Para onde vai esta memória? Da mesma forma que dizemos da memória do corpo quando fazemos exercícios físicos, temos uma memória de que natureza em relação a estas histórias? Quem não teve dúvida sobre a origem de uma cena? Era um filme? Um sonho? Alguém me contou? Eu vivi?”.
Em “Famintas”, Lua Santosouza traz o texto mais perturbador do livro, com uma escrita disruptiva que choca o leitor ao mostrar o lado mais sombrio da feminilidade, na sua relação com o impossível da sexualidade e da maternidade: “Piscavam os cílios confusos, eriçavam-se os pelos delirantes e os dentes impacientes trincados em meio à saliva ácida do apetite se desmanchavam junto a mulher. Filha, não suportava me ver fora de mim. Nossos sorrisos eram iguais. Era insuportável. Filha, não suportava que você me precisasse tanto”.
Sobre a autora | organizadora: Maria Letícia de Oliveira Reis possui graduação em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2000), mestrado em Psicologia pela Universidade São Marcos (2005). Doutorado em Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da USP (2015). Tem experiência na área de Psicologia, atuando principalmente nos seguintes temas: psicanálise, infância, experiência, clínica, memória e narrativa.
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